terça-feira, 9 de setembro de 2008

ACO 575 DF STF

EMENTA: IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. LITÍGIO ENTRE ESTADO ESTRANGEIRO
E O DISTRITO FEDERAL. AÇÃO CIVIL DE REPARAÇÃO PATRIMONIAL
(ACIDENTE QUE ENVOLVE VEÍCULO DIPLOMÁTICO). COMPETÊNCIA
ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (CF, ART. 102, I, “e”).
EVOLUÇÃO DO TEMA NA DOUTRINA, NA LEGISLAÇÃO COMPARADA E NA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: DA IMUNIDADE
JURISDICIONAL ABSOLUTA À IMUNIDADE JURISDICIONAL MERAMENTE
RELATIVA. PRECEDENTES DO STF (RTJ 133/159 e RTJ 161/643-644).

DESPACHO: O Distrito Federal promove a presente ação civil de
reparação patrimonial contra a República dos Camarões, sob a
alegação de que um membro integrante da Missão Diplomática desse
Estado estrangeiro, “dirigindo veículo pertencente à Embaixada”
(placas CD-602), teria ocasionado danos materiais ao patrimônio
público local, eis que o automóvel conduzido pelo diplomata Jean-
Blaise Konn, desenvolvendo velocidade excessiva (fls. 17),
“chocou-se com um poste de iluminação pública”, causando os
prejuízos cujo valor se acha estimado na peça documental produzida
a fls. 45.

Cabe reconhecer, preliminarmente, que, tratando-se de litígio
entre Estado estrangeiro e o Distrito Federal, assiste, ao Supremo
Tribunal Federal, competência originária para processá-lo e julgálo,
inocorrendo, a esse respeito, notadamente em face da
existência de explícita previsão constitucional (CF, art. 102, I,
“e”), qualquer divergência de índole doutrinária em torno do órgão
investido de jurisdição, para, no plano interno, dirimir conflitos
interestatais (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de
1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo IV/24-25, item n. 11,
2ª ed./2ª tir., 1974, RT; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à
Constituição de 1988”, vol. VI/3084-3086, item n. 105, 1992,
Forense Universitária; WALTER CENEVIVA, “Direito Constitucional
Brasileiro”, p. 195, item n. 4, 1989, Saraiva; PINTO FERREIRA,
“Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 4/104, 1992,
Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS, “Comentários à
Constituição do Brasil”, vol. 4, tomo III/167, 1997, Saraiva;
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição
Brasileira de 1988”, vol. 2/219, 1992, Saraiva, v.g.).
Impõe-se analisar, contudo, uma outra questão prévia, impregnada
do mais alto relevo jurídico, consistente na discussão relativa à
imunidade jurisdicional de Estados estrangeiros perante o Poder
Judiciário nacional.

Como se sabe, a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros
derivava, ordinariamente, de um princípio básico - o princípio da
comitas gentium - consagrado pela prática consuetudinária
internacional, assentado em premissas teóricas e em concepções
políticas, que, fundadas na essencial igualdade entre as
soberanias estatais, legitimavam o reconhecimento de que par in
parem non habet imperium vel judicium, consoante enfatizado pelo
magistério da doutrina (JOSÉ FRANCISCO REZEK, “Direito
Internacional Público”, p. 173/178, itens ns. 96 e 97, 7ª ed.,
1998, Saraiva; CELSO DUVIVIER DE ALBUQUERQUE MELLO, “Direito
Constitucional Internacional”, p. 330/331, item n. 3, 1994,
Renovar; ALFRED VERDROSS, “Derecho Internacional Publico”, p.
171/172, 1972, Aguilar, Madrid; JACOB DOLINGER, “A Imunidade
Estatal à Jurisdição Estrangeira”, in “A Nova Constituição e o
Direito Internacional”, p. 195, 1987, Freitas Bastos; JOSÉ CARLOS
DE MAGALHÃES, “Da Imunidade de Jurisdição do Estado Estrangeiro
perante a Justiça Brasileira”, in “A Nova Constituição e o Direito
Internacional”, p. 209/210, 1987, Freitas Bastos; AMILCAR DE
CASTRO, “Direito Internacional Privado”, p. 541/542, item n. 295,
4ª ed., 1987, Forense, v.g.).

Tais premissas e concepções - que justificavam, doutrinariamente,
essa antiga prática consuetudinária internacional - levaram a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente aquela que
se formou sob a égide da revogada Carta Política de 1969, a
emprestar, num primeiro momento, caráter absoluto à imunidade de
jurisdição instituída em favor dos Estados estrangeiros (RTJ
66/727 - RTJ 104/990 - RTJ 111/949 - RTJ 116/474 - RTJ 123/29).
Essa orientação, contudo, sofreu abrandamentos, que, na vigência
da presente ordem constitucional, foram introduzidos pelo Supremo
Tribunal Federal, quando do julgamento da Apelação Cível 9.696-SP,
Rel. Min. SYDNEY SANCHES (RTJ 133/159) e do Ag 139.671-DF (AgRg),
Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 161/643-644).
Em função dessa nova orientação, a jurisprudência firmada pelo
Supremo Tribunal Federal, tratando-se de atuação de Estado
estrangeiro em matéria de ordem privada, notadamente em conflitos
de natureza trabalhista, consolidou-se no sentido de atribuir
caráter meramente relativo à imunidade de jurisdição, tal como
reconhecida pelo direito internacional público e consagrada na
prática internacional.

Esse entendimento jurisprudencial, formulado sob a égide da
vigente Constituição, foi bem sintetizado pela Primeira Turma do
Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar o Ag 139.671-DF (AgRg),
Rel. Min. CELSO DE MELLO, proferiu decisão unânime,
consubstanciada em acórdão assim ementado:
“A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, quando se tratar
de litígios trabalhistas, revestir-se-á de caráter meramente
relativo e, em conseqüência, não impedirá que os juízes e
Tribunais brasileiros conheçam de tais controvérsias e sobre elas
exerçam o poder jurisdicional que lhes é inerente.
.......................................................
O novo quadro normativo que se delineou no plano do direito
internacional, e também no âmbito do direito comparado, permitiu -
ante a realidade do sistema de direito positivo dele emergente -
que se construísse a teoria da imunidade jurisdicional relativa
dos Estados soberanos, tendo-se presente, para esse específico
efeito, a natureza do ato motivador da instauração da causa em
juízo, de tal modo que deixa de prevalecer, ainda que
excepcionalmente, a prerrogativa institucional da imunidade de
jurisdição, sempre que o Estado estrangeiro, atuando em matéria de
ordem estritamente privada, intervier em domínio estranho àquele
em que se praticam os atos jure imperii. Doutrina. Legislação
comparada. Precedente do STF.

A teoria da imunidade limitada ou restrita objetiva
institucionalizar solução jurídica que concilie o postulado básico
da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro com a necessidade
de fazer prevalecer, por decisão do Tribunal do foro, o legítimo
direito do particular ao ressarcimento dos prejuízos que venha a
sofrer em decorrência de comportamento imputável a agentes
diplomáticos, que, agindo ilicitamente, tenham atuado more
privatorum em nome do País que representam perante o Estado
acreditado (o Brasil, no caso).

Não se revela viável impor aos súditos brasileiros, ou a pessoas
com domicílio no território nacional, o ônus de litigarem, em
torno de questões meramente laborais, mercantis, empresariais ou
civis, perante tribunais alienígenas, desde que o fato gerador da
controvérsia judicial - necessariamente estranho ao específico
domínio dos acta jure imperii - tenha decorrido da estrita atuação
more privatorum do Estado estrangeiro (...).”
(RTJ 161/643-644, Rel. Min. CELSO DE MELLO - grifei)
Uma das razões decisivas dessa nova visão jurisprudencial da
matéria deveu-se ao fato de que o tema da imunidade de jurisdição
dos Estados soberanos - que, antes, como já enfatizado, radicavase
no plano dos costumes internacionais - passou a encontrar
fundamento jurídico em convenções internacionais (a Convenção
Européia sobre Imunidade dos Estados de 1972) ou, até mesmo,
consoante informa LUIZ CARLOS STURZENEGGER (RDA 174/18-43), na
própria legislação interna de diversos Estados, como os ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA (Foreign Sovereign Immunities Act de 1976), o
REINO UNIDO (State Immunity Act de 1978), a AUSTRÁLIA (Foreign
States Immunities Act de 1985), CINGAPURA (State Immunity Act de
1979), a REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL (Foreign States Immunities Act
de 1981) e o PAQUISTÃO (State Immunity Act de 1981),
exemplificativamente.

O novo quadro normativo que se delineou no plano do direito
internacional, e também no âmbito do direito comparado, permitiu -
ante a realidade do sistema de direito positivo dele emergente -
que se construísse, inclusive no âmbito da jurisprudência dos
Tribunais, a teoria da imunidade jurisdicional meramente relativa
dos Estados soberanos.

É por essa razão - já vigente o novo ordenamento constitucional
brasileiro - que tanto a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (RTJ 133/159 - RTJ 161/643-644) quanto a do Superior
Tribunal de Justiça (RSTJ 8/39 - RSTJ 9/53 - RSTJ 13/45),
refletindo o consenso emergente que se formou na análise do tema a
partir de recentes resoluções internacionais e de decisões
legislativas adotadas no plano do direito comparado, consolidaramse
no sentido de reconhecer que, modernamente, não mais deve
prevalecer, de modo incondicional, no que concerne a determinadas
e específicas questões - tais como aquelas de direito privado - o
princípio da imunidade jurisdicional absoluta, circunstância esta
que, em situações como a constante destes autos, legitima a plena
submissão de qualquer Estado estrangeiro à jurisdição doméstica do
Poder Judiciário nacional.

É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, tratando-se da
questão pertinente à imunidade de execução (matéria que não se
confunde com o tema concernente à imunidade de jurisdição ora em
exame), continua, quanto a ela (imunidade de execução), a entendêla
como sendo de caráter absoluto, ressalvadas as hipóteses
excepcionais (a) de renúncia, por parte do Estado estrangeiro, à
prerrogativa da intangibilidade dos seus próprios bens (RTJ
167/761, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - ACOr 543-SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE) ou (b) de existência, em território brasileiro, de bens,
que, embora pertencentes ao Estado estrangeiro, sejam estranhos,
quanto à sua destinação ou utilização, às legações diplomáticas ou
representações consulares por ele mantidas em nosso País.
Cabe referir, neste ponto, a propósito da questão específica da
imunidade de execução, o autorizado magistério de JOSÉ FRANCISCO
REZEK (“Direito Internacional Público”, p. 176/177, item n. 97, 7ª
ed., 1998, Saraiva):
“A execução forçada da eventual sentença condenatória, entretanto,
só é possível na medida em que o Estado estrangeiro tenha, no
âmbito espacial de nossa jurisdição, bens estranhos à sua própria
representação diplomática ou consular - visto que estes se
encontram protegidos contra a penhora ou medida congênere pela
inviolabilidade que lhes asseguram as Convenções de Viena de 1961
e 1963, estas seguramente não derrogadas por qualquer norma
ulterior (...).” (grifei)

Essa, contudo, não é a hipótese dos autos, pois, aqui, ainda se
está em face de processo de conhecimento destinado à obtenção de
um provimento judicial condenatório, motivado por atuação de
agente diplomático estrangeiro, em situação aparentemente
desvinculada do contexto de suas funções de representação do
Estado acreditante (“État d’envoi”).

Vê-se, portanto, como já ressaltado, que a questão prévia a ser
examinada na presente causa diz respeito ao tema da imunidade de
jurisdição.

Impõe-se destacar, por isso mesmo, na linha dos
precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal (RTJ 133/159 -
RTJ 161/643-644), que deixará de prevalecer, excepcionalmente, a
prerrogativa institucional da imunidade de jurisdição (não se
discute, no caso, a questão pertinente à imunidade de execução),
sempre que o representante do Estado estrangeiro, por atuar em
matéria de ordem estritamente privada, intervier em domínio
estranho àquele em que usualmente se praticam, no plano das
relações diplomáticas, atos jure imperii.

Esse entendimento - que aparentemente se revela aplicável ao caso
ora em análise (direção perigosa de veículo automotor, por agente
diplomático estrangeiro, em situação alheia ao exercício das
funções diplomáticas, de que resultou dano ao patrimônio público
do Distrito Federal) - encontra fundamento, como já referido, em
precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal (RTJ 133/159,
Rel. Min. SYDNEY SANCHES - RTJ 161/643-644, Rel. Min. CELSO DE
MELLO), apoiando-se, ainda, em autorizado magistério doutrinário
(PONTES DE MIRANDA, “Comentários ao Código de Processo Civil”,
tomo II/263-265, 2ª ed., 1979, Forense; CLÓVIS RAMALHETE, “Estado
Estrangeiro Perante a Justiça Nacional”, in “Revista da Ordem dos
Advogados do Brasil”, nº 4/315-330, Setembro/Dezembro 1970;
AMILCAR DE CASTRO, “Direito Internacional Privado”, p. 540-541,
item n. 295, 4ª ed., 1987, Forense; CLÓVIS BEVILÁQUA, “Direito
Público Internacional”, tomo I/79, 2ª ed., Freitas Bastos; OSCAR
TENÓRIO, “Direito Internacional Privado”, vol. II/351, 11ª ed.,
Freitas Bastos; HILDEBRANDO ACCIOLY, “Tratado de Direito
Internacional Público”, vol. I/227, item n. 330, 2ª ed., 1956, Rio
de Janeiro; PEDRO LESSA, “Do Poder Judiciário”, p. 212, 1915,
Livraria Francisco Alves; GUIDO FERNANDO SILVA SOARES, “Das
Imunidades de Jurisdição e de Execução”, p. 152-161, 1984,
Forense; LUIZ CARLOS STURZENEGGER, “Imunidades de Jurisdição e de
Execução dos Estados - Proteção a Bens de Bancos Centrais”, RDA
174/18; OSIRIS ROCHA, “Reclamações Trabalhistas contra Embaixadas:
uma competência inegável e uma distinção imprescindível”, in LTr,
vol. 37/602; JOSÉ FRANCISCO REZEK, “Direito Internacional
Público”, p. 175/178, item n. 97, 7ª ed., 1998, Saraiva; GERSON
DE BRITTO MELLO BOSON, “Constitucionalização do Direito
Internacional”, p. 248/249, 1996, Del Rey).

Registre-se, neste ponto, por necessário, que a própria Missão
Diplomática da República dos Camarões, em Nota Verbal encaminhada
ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil (NV 011/97),
reconheceu que o evento danoso ao patrimônio público do Distrito
Federal - precisamente por resultar de comportamento estranho ao
exercício da função diplomática - constituiu um “affaire purement
privée” (fls. 44).

Sendo assim, e considerando-se a natureza do fato ensejador do
ajuizamento da presente ação, parece revelar-se viável a
instauração desta causa perante o Supremo Tribunal Federal (CF,
art. 102, I, “e”).

Antes de ordenar a citação, no entanto - e atento às implicações
que desse ato podem resultar, em face do que dispõem os Artigos 22
e 30 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (v., a
propósito, GERALDO EULÁLIO DO NASCIMENTO E SILVA, “A Convenção de
Viena sobre Relações Diplomáticas”, p. 107, 2ª ed., 1978,
Brasília) -, determino que se transmita o inteiro teor do presente
despacho ao Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores,
para que Sua Excelência inste a República dos Camarões a
pronunciar-se, por intermédio de sua Missão Diplomática, sobre a
sua eventual submissão à jurisdição do Poder Judiciário
brasileiro.

Com a resposta a ser encaminhada a esta Corte, pelo Ministério das
Relações Exteriores do Brasil, apreciarei, então, a questão
jurídica pertinente ao tema da imunidade de jurisdição.
Publique-se.

Brasília, 01 de agosto de 2000.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator

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